Quando David Chipperfield foi questionado sobre o que os visitantes deveriam esperar quando as obras de reforma da Neue Nationalgalerie de Mies van der Rohe em Berlim fossem concluídas, ele disse categoricamente: “Imagine uma Mercedes 1965. É um modelo bonito, sem dúvida, mas que estava caindo aos pedaços devido ao uso incessante e contínuo. Esta obra foi como levar um carro velho no mecânico para que cada uma das peças pudessem ser desmontadas, reparadas e engraxadas e então devolvidas ao seu respectivo lugar de origem para que quando fossemos ligar o motor, ele rodasse como se fosse novo”. Devido aos protocolos de saúde pública impostos como medidas de controle em tempos de pandemia, a cerimonia de reinauguração foi assistida por um número bastante limitado de jornalistas e visitantes, os quais tiveram a oportunidade de caminhar ao lado de Chipperfield sob a novíssima cobertura de aço da Neue Nationalgalerie de Mies. Uma das poucas felizardas a estar presente naquela ocasião, a editora e fotógrafa Gili Merin teve a oportunidade de fotografar o projeto durante o evento que antecedeu a inauguração do pavilhão e entrevistar o arquiteto responsável por trazer esta bela máquina de volta à vida.
Descubra a seguir todos os detalhes da nova Neue Nationalgalerie através das lentes de Gili Merin e acompanhe a entrevista exclusiva realizada pela fotógrafa com David Chipperfield.
Tudo começou em 2014, enquanto ele lia o prólogo de sua proposta de intervenção para o pavilhão da Neue Nationalgalerie de Mies—uma obra efêmera que consistia em 144 troncos de árvores intitulada “Sticks and Stones”. “Chegamos a conclusão de que é preciso restaurar o edifício de Mies, respeitando não apenas a sua arquitetura e a forma como ele foi construído em 1960, como se estivéssemos trabalhando em um sítio arqueológico da modernidade”, disse Chipperfield. É muito comum em obras de reforma de edifícios modernistas substituir antigas peças e velhos componentes por cópias novas idênticas, mas em se tratando da obra-prima de Mies van der Rohe, eles preferiram não tomar nenhum atalho, não apenas por seu papel na história da arquitetura moderna, mas também por seu imenso valor cívica para a cidade de Berlim. “Seria muito mais fácil substituirmos tudo aquilo que precisava ser substituído... Mas fizemos questão de manter absolutamente tudo: 35.000 ítens entre componentes metálicos, peças de mármore, painéis de madeira e pedras naturais foram removidos, limpos, reparados e colocados de volta em seu devido lugar—algo nunca antes visto em se tratando de uma obra dos anos 1960.”
A maioria das pessoas o achava feio—parecido a um posto de gasolina. E do ponto de vista curatorial e museológico ele era um pesadelo. Ainda assim este edifício sobreviveu e se tornou uma das instituições mais respeitadas da Berlim Ocidental. -- David Chipperfield
O resultado, de longe, é hipnotizante: a pele de vidro do edifício foi completamente substituída conforme Mies sempre sonhou—fachadas completamente transparentes. No interior, as paredes de mármore, o pavimento de pedra natural, cada uma das divisórias de madeira e as icônicas cadeiras Barcelona foram restauradas ao esplendor de sua glória original. Chega até a ser ridículo mencionar os pequenos acréscimos que fizemos, como as letras douradas do painel de informações no saguão principal—elas se tornam praticamente imperceptíveis em meio ao caos criado pelos painéis informativos sobre os protocolos de segurança em tempos de covid. No subsolo, os espaços expositivos foram preservados tais e quais como haviam sido pensados originalmente, embora no pátio rebaixado as árvores existentes, já centenárias, tenham sido substituídas por outras mais jovens, possivelmente devido à interferência das raízes no pavimento original. Observando o edifício desde dentro, é evidente o respeito (e a quantia significativa de recursos) empregado pelos arquitetos em relação ao projeto original e ao valor cívico e histórico do edifício.
David Chipperfield lembra que na ocasião da primeira inauguração da Neue Nationalgalerie de Mies, este pavilhão monumental de aço e vidro era visto como algo estranho e até suspeito. Isso porque o arquiteto alemão já havia falhado ao tentar convencer o governo cubano e as autoridades chinesas para construir o pavilhão em outras terras antes de voltar-se a Berlim dividida para construí-lo finalmente a poucos metros do infame muro que dividia a cidade. “A maioria das pessoas o achava feio—parecido a um posto de gasolina”, disse Chipperfield, acrescentando que do ponto de vista curatorial e museológico a estrutura era vista como um pesadelo. Ainda assim este edifício sobreviveu e se tornou uma das instituições mais respeitadas da Berlim Ocidental—um dos principais componentes da identidade cívica desta cidade junto ao Kulturforum, a Filarmônica e o edifício da Biblioteca do Estado projetadas por Hans Scharoun.
No contexto de uma cidade dividida e que procurava se reinventar através da arquitetura, “havia uma grande pressão sobre Mies e sobre o próprio edifício que ele estava se propondo construir”, disse Chipperfield. E parece que esta pressão não diminuiu nem um pouco com o passar dos anos. Sobre intervir em um edifício tão icônico como a Neue Nationalgalerie de Mies em Berlim, Chipperfield disse: “Me perguntaram muitas vezes porque eu havia assumido esta tarefa, já que qualquer coisa que eu fizesse seria um grande erro. Mas a nossa ideia era que, no momento em que as obras fossem concluídas e o edifício devolvido à cidade de Berlim, todos voltariam a falar apenas de Mies van der Rohe e não mais de David Chipperfield”. Desde que o edifício foi fechado para reforma no ano de 2014, iniciaram-se também as obras do “Museu do Século 20” projetado pela Herzon e De Meuron, obstruindo ainda mais a antiga perspectiva do Kulturforum que permeava do edifício de Mies. Sem sombra de dúvida, a Berlim de 2021 não é a mesma de outrora: o muro caiu e a Berlim unificada tornou-se uma das cidades mais agradáveis de se viver em toda da Europa. Com um projeto de renovação que custou o olho da cara (somado as cifras obscenas do projeto de reconstrução do Castelo de Berlim não muito distante dali), devemos questionar o papel de um projeto tão exorbitante para a memória coletiva da cidade. (Pelo menos a sua fotogenia permaneceu intocada.)
Gili Merin é arquiteta, fotógrafa e aluna de doutorado na Architectural Association de Londres. Ao longo de sua carreira profissional a arquiteta passou pelo OMA de Rotterdam, pelo Kuehn Malvezzi de Berlin e pelo escritório Efrat-Kowalsky de Tel Aviv. Além disso, Merin participou de uma série de exposições internacionais, incluindo a Bienal de Arquitetura de Veneza, a Bienal de Urbanismo de Seul e a Wohnungsfrage de Berlim. Gili Merin escreve e fotografa regularmente para o Architects’ Journal e para o Ha’aretz. Seus ensaios e reportagens foram publicados em uma série de jornais impressos e online, entre eles os Arquivos AA, MITs Thresholds, The Economist, The Guardian, The Architectural Review, Mark Magazine, Frame, Disegno, Domus, Quaderns, Artsy, Ha’aretz, Detail, ArchDaily e Metropolis. Saiba mais sobre o trabalho da arquiteta e fotografa em seu perfil oficial do Instagram e em seu website.